segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato XIII - Curtas de Fim de Ano do Indiana Neitan




Registro de Viagem: Costa do Marfim

Relato XIII – Curtas de Fim de Ano do Indiana Neitan– 28 de Dezembro a 03 de Janeiro

Nesse período pós-natal e ano novo não tive nenhum acesso à internet. Sendo assim, compilei o que lembrei em curtas (umas mais longas que as outras) para que vocês saibam como foi minha virada de ano. A propósito, viajei pra Yamoussoukro, a capital política do país no dia 31. O plano era voltar no dia 3, mas como lá não tem nada, voltei no dia 1º. Bem, espero que gostem das curtas. Abraços e Deus seja com vocês.

***

A Vingança

Quem tem acompanhado o blog sabe que divido a cama com meu “irmão”, Franc. É muito difícil dormir por dois motivos: (1) o colchão da cama é praticamente um tablado e (2) o Franc me chuta o tempo todo. Por estar dividindo a cama, esforço-me para não fazer movimentos que possam vir a incomodá-lo. Infelizmente, o mesmo esmero não se encontra nele, que, por vezes, ocupa 80% da cama com seus braços e pernas estiradas. Como eu naturalmente acordo antes de fazer qualquer movimento brusco capaz de acordá-lo, nossa situação é aquela do diagraminha dos jogos em que um jogador executa a jogada e o outro não, resultando num payoff positivo (noite bem dormida) para o primeiro (Franc) e um payoff bem negativo (noite pessimamente dormida) para o segundo (eu). Por vezes, seu pé preto número 47 fica a centímetros de minha cara.

Aproveitei uma das vezes em que acordei após um chute e surrupiei o travesseiro do meu mano. De manhã cedo, após outro chute, tirei o travesseiro do esconderijo (debaixo da cama) e pus perto dele. Assim, quando ele acordou, sequer imaginava de onde vinha o torcicolo de que tanto reclamava.

O Fedorento

Outro atributo do Franc é seu fedor. Todo mundo aqui tem uma nhaca marcante, mas a do Franc é realmente a referência. Ele deixa suas camisetas penduradas e quando me levanto da cama aquela catinga impregna minhas narinas. Somente lendo isso, é difícil para que vocês desenvolvam empatia suficiente para realmente saberem o que eu tenho que cheirar todo dia. Achei um modo para exemplificar.

Sabem aquele cheiro tão forte que torna capaz até sentir o gosto? Quem anda por São Paulo vê muitos carrinhos vendendo milho. Às vezes sequer o avistamos, mas o cheiro gostoso do milho verde nos faz saber que dentro em pouco avistaremos um vendedor e já até podemos saborear o quitute. Captaram?

O suor do Franc – que dorme comigo toda noite – é de um azedo tal que é como se eu tivesse dado uma lambida num picolé de mijo.

A Indiscreta

Volto do trabalho e chego em casa. Converso ainda alguns assuntos de trabalho com o Wilfred, que é meu vizinho, e uma das gêmeas caçulas – não sei bem qual porque eu realmente não consigo diferenciá-las – sai de casa, vai até o pé-de-manga, abaixa-se e começa a fazer xixi. Terminada, levanta-se, vem me dar um abraço e entra em casa. Diante disso, dois lembretes: nunca andar descalço e nunca mais segurar as mãos das crianças daqui.

A Correção

Essa foi a “Maman” que me contou. Estava ela na feira (aquela do peixe) quando uma senhora da igreja batista perguntou como andava o Natu. “Natu? Quem é Natu?” – perguntou Maman. “Teu filho branco, ora!” – redargüiu a irmã. “Meu bebê não se chama Natu! Ele se chama Natón!”

E tenho dito!

Autoridade

Fiz um amigo polonês aqui e seu nome é Adam. Como AIESEC é inexistente para nós, então os estagiários estrangeiros se arranjam uns com os outros para sociais e afins. No último happy hour no bar brasileiro, cada um falava de seu trabalho. Eis mais ou menos o relato de Adam:

“Trabalho numa ONG com 12 outros caras e eles não fazem nada o dia inteiro e, após um mês aqui, não me deram nada pra fazer. Não há banheiro no trabalho e todos nós fazemos xixi numa das paredes. O pior, contudo, não é isso. Ao longo do dia, devido ao calor, os rapazes tiram peças de suas roupas. O chefe é sempre o com menos roupas e fica só de cuecas. Quando ele não está, é política da empresa que o mais despido fica no comando. Sempre sou um subordinado.”

Grifos meus.

Caçando com gato

Mais uma de Adam. Estávamos nós na embaixada do Burkina Faso querendo saber como obter um visto quando Adam perde a paciência e fala ao funcionário com seu péssimo francês e seu insipiente espanhol:

“Comment puis je obtener el visto burkineño?!”

A Máxima

Meu pai – o brasileiro – é conhecido na família por suas célebres “máximas” (nada) filosóficas. Bom filósofo de poltrona que é (ou seria de rede?), ele me diz ao conversarmos ao telefone:

“É, meu filho, você aí é um pingo de leite num balde de café”

Profundo, páps!

Na casa do chefe – Parte I

O Sr Happy Happy ficou muito feliz (trocadilho interlinguistico infame, eu sei, mas não resisti) com meu trabalho em livrar seu computador dos vírus. Eu só instalei o AVG e apertei “verificar”, mas tudo bem. Ele contou pra esposa e fui designado para ir à casa do chefinho instalar o antivírus no PC doméstico, que roda há um ano SEM antivírus.

O motorista me levou até a casa do chefe e quem me atendeu foi uma Sra Happy Happy com máscara de beleza (cúmulo da inutilidade) e os cabelos arrepiados. Após um esforço hercúleo para não rolar ao chão gargalhando diante dessa besta-fera, entrei na casa e fui tentar arrumar o computador.

O computador está tão leproso que sequer o internet browser roda. Ele até abre na página do Google, mas fecha mediante a ordem de rodar qualquer aplicativo mais importante. Após 40 minutos tentando entrar nos sites de download de softwares, consegui dar a ordem pra baixar o AVG. O download demorou muito e o arquivo veio corrompido. Nesse meio tempo, chegou a mãe da Sr Happy Happy, que berra tão alto quanto a filha.

Após anunciar o fracasso, a ufanista Mamãe Happy Happy fala “não consegue nem arrumar isso, vem querer colonizar a gente?”. Não houve sentido nenhum no que essa velha louca gritou, mas confesso que a última coisa que eu esperava encontrar no lar dos Happy Happy fosse nexo.

Na casa do chefe – Parte II

O Sr Happy Happy insistiu que eu voltasse lá ao dia seguinte do relato acima e assim ocorreu. Voltei lá e, como sempre, nada deu certo. Avisei ao chefe que ou ele chama um profissional ou compra outro computador. Mas o que realmente chamou atenção foi a Mamãe Happy Happy, que se encontrava lá novamente. Ao atender ao telefone, ela começou a conversar normalmente com sua amiga e lá pras tantas disse que não havia nada de novo, só o “branco de ontem” mexendo no computador. Mulher chata do meu abuso!

Zangado

Lembram do moleque capeta que me chamou de dentuço? Pois ele é o capeta mesmo. Atazana a vida das crianças mais novas que ele. Saindo na terça à noite para o culto, ele e mais dois outros moleques de sua idade (uns 9 anos) seguravam no chão e amarravam os pés duma menina de uns três anos. Irei-me e gritei para pararem e eles se afastaram de susto. Nunca tinham visto o le blanc aqui irado. Desamarrei a coitada e mandei os moleques virem tentar fazer o mesmo comigo. O capeta e seus dois amigos fugiram e isso foi para alegria geral do público menor de cinco anos, as vítimas costumazes das traquinagens desses três.

Indagação (Em Yamoussoukro)

Eu andando na rua quando:

MOÇA ALEATÓRIA: Le Blanc, você é da ONU?

EU: Não.

MOÇA ALEATÓRIA: Você não é do corpo de paz?

EU: Não.

MOÇA ALEATÓRIA: Você não é dos militares estrangeiros?

EU: Não.

MOÇA ALEATÓRIA: Mas já foi militar, não?

EU: Como é?

MOÇA ALEATÓRIA: É que você anda marchando.

Surpresa (Em Yamoussoukro)

Passando pela boulevard principal de Yamoussoukro, vejo pintado numa parede um coração vermelho contendo uma pomba em cima dos dizeres “Église Universelle Du Royame de Dieu”. Até aqui?!

Fundação Felix Boigny (Em Yamoussoukro)

Chegamos eu e Wilfred na fundação e pergunto pro guarda se precisamos mostrar documento pra entrar. Ele responde que sim e que tem que pagar: 1000 francos pra marfinenses e 2500 francos para europeus.

“Não sou Europeu, sou brasileiro” – digo e mostro o passaporte

“Mas você é branco, não é?” – responde o guarda

Fiquei bravo e disse que no meu país isso era crime. “Mas fazer o quê? Vir para essa selva distante da civilização que é a Costa do Marfim foi escolha minha, não?” – resmunguei.

Tirei foto do lado de fora mesmo e fui embora.

Gambá no Campo de Flores

Franc decidiu sair pra curtir a noite com seus amigos. Antes de sair, pede meu desodorante e meu perfume emprestados. Eca!

A Crise Existencial

Eu voltando da igreja quando uma menininha faz o que todas as crianças fazem: apontam pra mim e gritam “le blanc!”.

Em face disso, brincando, retruquei apontando do mesmo modo: “la noire!” (=negra), ao que ela responde: “onde??”

O Monstro e o Pulo

Todo mundo já sabe do medo que a Roxanne tem por mim. Contudo, tenho que relatar o que ela fez tão logo voltei da igreja.

Entre pela porta do cortiço, ela me viu e, como não sabe andar ainda e só engatinha, fez um esforço estupendo e, tal qual uma rã, articulou seus bracinhos rechonchudos e suas perninhas roliças e conseguiu dar um pulo para detrás do parapeito e se esconder de mim. Isso me fez lembrar de uma vez que assisti a um programa no National Geographic sobre as pulgas e como elas pulavam 30 vezes seu tamanho. Mutatis mutandis, essa é a Roxanne.

A propósito, o decurso de seu medo é o contrário das demais crianças; não diminui com o tempo, só aumenta.

Extravagante

Tento o máximo possível ser discreto, pois eu chamo muita atenção mesmo quando não faço nada. Infelizmente, o pessoal aqui não coopera muito. Saio do quarto pra ir à latrina fazer xixi quando:

PAI: Pra onde você vai?

EU: Fazer xixi.

PAI: Ao banheiro, então?

EU: É.

(ele bota a cabeça pra fora da porta de casa)

PAI (berrando): SAIAM DO BANHEIRO PORQUE O NATAN VAI MIJAR!!

MURMÚRIO GERAL: Hihihi! O Natan vai mijar!

JUDITH (criança vizinha): O Natan faz “pipi”?!

(estardalhaço dos meus “pais” para que ninguém entre no banheiro antes de mim. Caminho até o banheiro)

MURMÚRIO GERAL: Hihihi!

(Judith insiste)

JUDITH: Branco faz “pipi” mesmo? Eu nunca vi o Natan fazendo!

Mme Agathe (mãe da Judith): É porque ele não faz na rua, só na latrina.

JUDITH (e demais crianças que tinham a mesma dúvida): Ahhhh!

EU: ...

Entrei, fiz xixi e voltei pra casa. No caminho de volta, todos olhavam pra mim e continuavam rindo. Tenho de achar um modo de convencê-los que sou de outro país, não de outro planeta.


"Béni soit le Dieu et Père de notre Seigneur Jésus Christ, qui nous a bénis de toute bénédiction spirituelle dans les lieux célestes en Christ selon qu'il nous a élus en lui avant la fondation du monde, pour que nous fussions saints et irréprochables devant lui en amour,nous ayant prédestinés pour nous adopter pour lui par Jésus Christ, selon le bon plaisir de sa volonté, à la louange de la gloire de sa grâce dans laquelle il nous a rendus agréables dans le Bien-aimé." - Éphésiens 1:3-6


2 comentários:

Ligia Cerqueira disse...

Cada coisa viu..rs
Vc não pode dizer que não se divertiu!
E o que deu com o computador do Sr Happy?
Bjs

Mari Hermanny disse...

Ri muito (pra não chorar)! Quando vc voltar, faço questão de chamar vc de "le blanc" pra vc se sentir em casa! uahuahau
Feliz 2010!