sábado, 9 de janeiro de 2010

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato XVI - No fim das contas, um dia bom






Registro de Viagem: Costa do Marfim

Relato XVI – No fim das contas, um dia bom – 08 de Janeiro

Bem, o dia foi bom, mas começou com o pé esquerdo. Como ocorre quase toda manhã, acordo às 05h da matina meio zonzo e penso comigo mesmo: “estarei sonhando?”. Mas, ao olhar pro lado e ver o fedorento do Franc espalhado por toda a cama, a realidade me diz: “Sonhando uma pemba. Aqui é a África, bixão. Te vira!” Levanto, tomo banho, tomo café, me arrumo e saio. Ao encontrar Wilfred na esquina, nós caminhamos juntos até o ponto das lotações. Isso é algo tão trivial e corriqueiro que não merece relato. Hoje de manhã, contudo, ao ir para as lotações, acidentalmente pisei num verdadeiro bolo de bosta e o autor da mina terrestre, como em risadas, fez no exato momento: béééé! “Comecei bem!” – pensei ironicamente

Pegamos o táxi, blábláblá e já estamos no trabalho. Pego o portfólio de vendas e os cartões de visita e estou pronto para sair para vender. Um pequeno detalhe: o chefe queria uma reunião comigo e Wilfred às 08h30. Às 09h45, quando ele chega, ele diz que pode esperar até a tarde. O Sr Happy Happy é meio estranho mesmo. Sempre atrasado. Para saber com quanto tempo de atraso ele deve chegar, ele pega o horário marcado, multiplica por três, soma 20 minutos e depois chega na hora que bem entender. É mais uma arte do que uma ciência.

Dispensado pelo chefe, vou pra embaixada brasileira vender meu peixe (no caso, entregas de correspondências). No caminho, encontro três oficiais do corpo de paz da ONU. Eles são de Bangladesh. Eu nunca havia conhecido ninguém de lá, mas, para aqueles que não conhecem, eles são iguais ao cara do filme “Quem quer ser um milionário” e o Rajesh Koothrappali. Fizemos amizade, eles pegaram meu cartão e tiramos fotos. Eles ficaram de me ligar pra marcar um futebol e tudo mais.

Parêntese nº1: Pelo menos foi isso que entendi do inglês deles. Na maior parte do tempo eu não sabia se estavam falando de palitos ou petróleo. Fecha parêntese.

Fiz novos amigos e estava indo à minha primeira reunião. Só alegrias! Quando cheguei na embaixada brasileira, até a recepcionista, a Maysa (sério mesmo, é o nome dela), foi simpática comigo. Acho que é porque eu estava muito gato ontem com minha gravata azul, mas isso não vem ao caso. Fui procurar o Syllas, responsável do comercial administrativo. Ah, só um aviso pra minha digníssima Lili, a freira não estava lá.

Parêntese nº2: Eu disse para minha amada que gostava de ir para a embaixada porque lá era não cheirava mal e, a propósito, tinha conhecido uma freira lá. A patroa então fez a seguinte associação: embaixada->cheiroso->freira, de onde se conclui que eu tenho tara por cheirar freiras. Sempre que eu digo que fui à embaixada, a Ligia pergunta: “cheirou a freira?” Claro que isso não faz o menor sentido, mas que importa para o coração apaixonado? Sei que a última pergunta retórica também não fez sentido, mas também tenho direito à minha lógica paralela. Fecha parêntese.

Voltando à embaixada, o Syllas disse que a responsável era a Fátima. A Fátima é um doce, mas hoje estava super atarefada e não pode me atender. Ele me passou pra Maysa, mas, de algum modo, a Marilene apareceu do nada e disse que o Sóstenes (o diplomata) ia me atender. Nossa reunião de negócios durou uns dois minutos, o resto fomos nós falando do governo Lula. Hohohoho! Entretanto, há algo aqui digno de nota: isso tudo não aconteceu rapidamente. Nesse meio tempo, estive conversando com uma brasileira e sua filha que moram aqui há três anos e voltaram agora ao Brasil. Chamam-se Mônica a Amany, respectivamente, e foram muito simpáticas. Conversando sobre minhas aventuras até então, fiz cara de cão sem dono e me convidaram para almoçar amanhã (sábado) na casa delas. Ah, moleque, que o hoje o dia ta bom! Quem se importa que a reunião de negócios não foi tão boa por já terem um contrato com a multinacional e infinitamente superior DHL? Amanhã eu almoço comida limpa e falando português!

Despedi-me da galera da embaixada e desci até o 8º, onde fica a embaixada japonesa. Cheguei lá e tinham dois baita seguranças. Após a revista, entrei na embaixada e dirigi-me à recepcionista (que era marfinense): “Bom dia! O gerente do comercial se encontra?” Com aquela coragem típica dos marfinenses, ela respondeu que não. Insisti e me apresentei, falei da empresa e solicitei novamente o gerente. Negou-me acesso uma vez mais. Aquele dia estava tão bom e meu humor era de tal forma positivo que utilizei uma tática corriqueira de São Paulo: botei meu sorriso colgate e lancei o xaveco na recepcionista. Perguntei se ela falava inglês, ao que ela respondeu “muito mau”. Falei tudo que havia falado em francês, mas agora em inglês. Quando ela me respondeu que não era possível, eu a interrompi e disse que ela havia mentido pra mim, pois seu inglês não era nada mau (era pior do que a galera do Bangladesh). “Hihihi, você acha mesmo?” – foi sua resposta. Daí eu perguntei se ela estudava, ao que ela respondeu que estudava business na Ameritech (uma boa escola local). Elogiei então a escola (“excelente renome!”) e disse que as duas línguas de negócios no mundo eram o inglês e o francês e que seu domínio de ambas mais sua formação na Ameritech a levariam longe (menti?). Após uma gargalhadinhas de sua parte, arrumei o sorrisão, dei a famosa piscadinha com o olho esquerdo (essa a Lili conhece bem) e dei o bote: “Que você pode fazer por mim?” Ela: “Um momento que vou chamar o gerente. Hihihi”. O gerente veio, conversamos, trocamos cartões e, apesar de eles trabalharem com a DHL também, vamos enviar uma proposta.

Voltei pro escritório, dei o relatório pro Sr Happy e fui almoçar. “Hoje o dia está tão bom que vou inovar no almoço!” Pedi um treco novo e quase não consegui comer de tanta pimenta. Tão logo saí do restaurante para voltar ao escritório, minha barriga fez o papel de Londres em 1941 e a pimenta, o da Força Aérea Nazista na operação Leão Marinho. Voei para o escritório, peguei o papel higiênico na minha mochila e fui agonizar na privada. Vocês não sabem como arde a pimenta marfinense no pobre do le blanc aqui. Chegou a hora que invariavelmente chegaria: não tem mais o que sair. Beleza. Comecei a me limpar.

Parêntese nº3: Sei que falo muito de cocô nesse blog. Mas procurem entender. Na civilização, o que mais me deixava aflito era a possibilidade de falta de comunicação: sinal ruim da Claro ou ausência de internet. Aqui, a aflição migrou disso para cocôs, sanitários, água corrente e encanamento interno. Fecha parêntese.

Estando eu me limpando, percebi que, infelizmente, eu estava num famoso caso do “quanto mais limpa, mais suja”. “E agora, meu Deus?” – pensei. E o pior é que não tinha chegado nem num estágio de “limpo o suficiente com 95% de confiança e rejeito Ho”. Não, ainda tinha muuuuuuuuuito pra limpar.

Parêntese nº4: A situação aqui não é a busca da perfeição, mas de gerenciamento de crise. Que é um a sujeirinha só? Quem nunca veio pra cá nem nunca esteve no exército não tem como saber. Portanto, não me julguem!

Acabado o papel e estando naquela, olhei pro rolinho de papelão do papel higiênico e ele olhou de volta pra mim. “Vai tu mesmo, negão” – pensei resolutamente. Cortei o papelão em tirinhas e fui mandando bala.

Parêntese nº5: O papelão do papel higiênico marfinense poderia seguramente ser usado como lixa na construção civil.

Gente, chegou uma hora que doía tanto que não dava mais. Vinha sujeira, tecido epitelial (ta certo isso?) e até cabelo. Decidi que tinha chegado no tal do “limpo com 95% de confiança rejeitando Ho", levantei as calças e voltei ao trabalho.

O trabalho no momento era produzir um letreiro pra empresa botar na frente do imóvel. Essa joça existe há 20 anos e nunca fizeram o letreiro. Quem vai fazer o design? Exatamente, o estagiário. Fiz um negócio bem simples: era o logo, as informações (telefone, e-mail, site) e a mascote da empresa (o carteirinho). O chefe amou.

“Beleza, então, vou ler e-mails” – decidi. Vi que tinha chegado um e-mail do papai em que ele manifestava sua alegria por eu estar providenciando outra moradia e associava isso, de alguma forma, ao desempenho de seu sistema digestivo. Transcrevo abaixo, literalmente, mais uma máxima do nobre filósofo:

“Meu filho, estou bem mais tranqüilo agora. Finalmente posso fazer cocô em paz”

Apesar de feliz por indiretamente ter aliviado a prisão de ventre do papai, dois pensamentos preocupantes me sobrevieram nessa hora: (1) ‘essa idéia fixa é hereditária?’ e (2)’raios, a dor de barriga voltou!’. Sem papel higiênico, tinha que esperar voltar pro cafundó do Judas onde eu moro e pagar uma visitinha pro Wilfred, que tem um banheiro decente pros padrões desse fim de mundo que é Andokoi, Yopougon. Depois de uma hora no trânsito, o cara de quem o Wilfred vai alugar (e talvez eu também) liga e pede para que tenhamos com ele naquela mesma noite. Pedimos pro taxista mudar o destino de Première Pont para Assovon. Ambos são em Yopougon, mas são bem longes um do outro.

Chegando em Assovon, vamos pra casa do proprietário dos flats. Eles falam longamente e eu suando frio pra não fazer pum.

Parêntese nº6: Na foto, a impressão é que há roupas flutuando à noite. Olhem atentamente e vocês verão gente dentro dessas roupas. Esforcem-se mais e verão os dentes e a parte branca da superfície do globo ocular dessas pessoas. Fecha parêntese.

As negociações são interrompidas pela telenotícia de que a equipe de futebol do Togo sofreu um atentado na Angola, onde ocorrerá a Copa Africana das Nações. Falam por 20 minutos sobre isso. Penso: “Quem se importa com a equipe do Togo?? Acabem logo com isso pra eu poder ir embora! Ahhhhhhhhhh! Se alguém me der um susto eu me borro todo! Bora que eu to quase chorando!” O cara me vê agonizando e oferece uísque. Aceito água, pois estava morrendo de sede também. Bebi tudo com dois goles. Quando vi, tinha gelo no copo. Recomendação número 1 para Costa do Marfim: nunca aceite gelo; não faz bem. Acrescentado isso, eu já estava prevendo o estrago que ia fazer na casa do Wilfred. Nunca mais me deixariam entrar lá. O negócio finalmente acabou e fomos pegar um táxi pra casa. Contudo, Andokoi é tão longe que nenhum taxista estava disposto a nos levar. Minha situação não permitia esperar. Paguei 1000 francos por uma corrida que custaria 250 durante o dia, mas com a condição que o taxista voasse. Ele realmente voou. Chegando no ponto em que acaba a estrada (onde é a lotação) e que iríamos a pé, pago com uma nota de 2000 francos. Cadê que o cara tem troco?

“Calma, Natan, é só arranjar troco” – falei sozinho. Tive que comprar um sanduíche (tinha almoçado às 13h e já eram 20h, ou seja, apesar da dor de barriga, estava morrendo de fome). Arranjei o troco, paguei o taxista e quebrei a regra número 2 para a Costa do Marfim: nunca comer nada na rua. “É hoje que eu acabo com minha moral na casa do Wilfred”. Esse pensamento assombroso intensificou-se depois que, após ter devorado o sanduba em três mordidas, ocorre a seguinte troca de palavras:

Wilfred: Parabéns, cara! Você comeu pimenta e nem reclamou!

EU: Como é?!?! Tinha pimenta?!?!

Passamos na venda e comprei logo três rolos de papel higiênico. Wilfred foi pra casa dele e eu fui pra minha para tirar o paletó e a gravata, mas acertamos que eu iria voando até a casa dele pra fazer o cocô da minha vida.

Chego na casa dele e bato à porta. A mãe dele atende com aquele olhar de “vem pra cá só pra isso, né, seu cagão infeliz?”. Vou ao banheiro e faço o que tinha de fazer. Não tem encanamento, a descarga é com balde. Pois bem, 6 baldes depois, desceu tudo. Ainda bem. Só tinha mais um balde. Imagina se não desce tudo? Despeço-me rapidamente de Wilfred e procuro vazar de lá, pois estava com muita vergonha. Com a alma aliviada (dentre outras coisas), volto pra casa, janto meu mamão e minhas mangas, leio 2 Coríntios e vou dormir.

Amanhã tem o almoço brazuca e depois sigo pra Grand-Bassam pra passar a noite na praia. É, até que o dia foi bom!

Que Deus os abençoe como ele tem abençoado a mim.

« Si quelqu’un n’aime pas le Seigneur, que Dieu le rejette ! Maranatha, viens Seigneur ! Que le Seigneur Jésus vous bénisse ! » 1 Corinthiens 16 :22-23

Um comentário:

Ligia Cerqueira disse...

Amor, em pouco mais de um mês vc terá uma cama só pra vc, água encanada, água potável e papel higiênico macio! ;)
Te amo, vc está realmente muito lindo na foto!