quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato XXI - Contraste: Locais vs Libaneses





Registro de Viagem: Costa do Marfim

Relato XXI – Contraste: Locais x Libaneses –21 a 27 de Janeiro

Minha experiência aqui tem sido inteiramente outra desde que mudei para os libaneses. Nada de fedor, sujeira, imundície, desconforto extremo além, claro, de outros atributos tão importantes quanto como nada de mentiras, desonestidade, preguiça e tantos outros adjetivos que certeiramente qualificam a ética de trabalho marfinense. Eis abaixo uma amostra do contraste.

Locais

Não tenho sido muito ativo no blog porque, sinceramente, não há muito que contar. Aliás, até há: meus conflitos com a AIESEC Côte D’Ivoire. Uma amiga brasileira vem pra cá e eles pediram para que eu entrasse em contato com ela para falar sobre “quão maravilhosa minha experiência tem sido” (sic). Fui totalmente honesto com ela e contei dos cafajestes patetas e mal-educados que rondam esse país. Também informei como esses pagãos primitivos falam com as meninas como se fossem prostitutas baratas. As intercambistas já me relataram algumas pérolas tais como “quando foi sua última vez?” ou “você costuma se tocar?” ou ainda “você quer botar um grande chocolate africano na boca”? Como relatei para a AIESEC na FGV, se alguém falasse assim com minha irmã ou com minha digníssima (por quem morro de saudades), eu arrancaria a espinha do sujeito pela garganta. Que posso fazer? Quando você é educado com humanos, você se enoja e ira-se com grosserias dignas de zona portuária.

Além disso, tem também a questão da acomodação. Esses ridículos falam para os intercambistas que aqui é tão maravilhoso que ninguém quer saber de voltar para casa. Esse é o que eu chamo de “Conto Marfinense”. Praticamente todo mundo aqui é vítima desse conto. Houve caso de uma estagiária recém-chegada que veio conversar comigo e chorou diante das condições em que ela se encontrava. Isso foi o fim da picada. Desde então, estamos nos mobilizando para compilar provas desse ridículo padrão de qualidade que a AIESEC Côte D’Ivoire tem.

O mais revoltante, contudo, em minha experiência pessoal, é a completa indiferença a riscos desse pessoal. Ao reclamar das condições em que me encontrei por metade do intercâmbio lá naquele cortiço em Yopougon, eu disse que a carência de higiene lá era tão forte que eu poderia ter pegado uma doença. Magnus, o diretor nacional de intercâmbio daqui (MCVPICX), disse “é, mas pegou doença?” no sentido de que eu não podia reclamar, pois nada havia acontecido. Mas isso não é só dos marfinenses, pois inclusive Wilfred – que é camaronense –teve a mesma atitude. Deveria eu esperar quebrar uma perna andando naquele terreno irregular em completa escuridão, contrair malária ou meningite ou ser agredido por um marfinense antes de poder reclamar?

Meu progresso foi mais ou menos assim no trato com os locais: simpatia->zanga->indiferença. Frio e direto são adjetivos que podem classificar meu atual tratamento com os marfinenses. Como já sei os preços do táxi para todos os distritos de Abidjan, eu já não negocio mais com os motoristas. Eu ofereço o preço corrente no mercado – não quero tirar o sustento desse pessoal carente, simplesmente me recuso pagar a mais pelo fato de ser branco. Se o sujeito aceita, entro no carro. Se não aceita, deixo-o falando sozinho e paro outro táxi imediatamente. Como o que não falta aqui é táxi e eu ofereço realmente o preço de mercado, o motorista reconsidera e pede para que eu entre no carro. Uns ainda me dão lição de moral sobre educação, que eu não posso deixá-los falando sozinho. Ora! Dou-lhes uma lição de higiene antes de me darem uma lição de cortesia! Eles estão mais por fora do que braço de caminhoneiro: já fui excessivamente cordial por aqui e paguei caro (literalmente) por isso.

Libaneses

Essa seção do relato é o exato oposto do relato anterior. Marcory Residentiel, onde correntemente habito com um genuíno representante dos Mourtada, é um mini-Líbano. O árabe é ouvido com freqüência e é bem engraçado quando eles discutem futebol, esporte pelo qual são grandemente apaixonados. Alguns já tentaram me ensinar um pouco da língua, mas receio que minha extrema dificuldade em aprender a falar “oi” tenha-os desestimulado da empreitada de ensinar esse tupiniquim a falar a língua dos Sheiks. O pessoal aqui me respeita e nunca mais foi identificado como le blanc, mas simplesmente como “mon ami”. Quando entro nos restaurantes e lojas em que já sou conhecido, recebem-me com um grande sorriso em que dentes lindos ficam à mostra. As lojinhas de chocolate e as floriculturas daqui são a coisa mais linda de tão limpas e organizadas que são. Além disso, sendo todos comerciantes natos, tratam o cliente como se fosse realmente um rei.

Um atributo bem característico dos libaneses é que são muito bonitos. Olhos cinza, cabelos escuros e rostos delineados, algumas amigas que estão no intercâmbio disseram que não se importariam nadinha que eu lhes apresentasse meus amigos libaneses! As senhoras, mesmo com o véu, não têm em nada sua beleza comprometida. As crianças eu já sabia que eram lindas, pois trabalho num edifício que tem uma parte residencial e que é cheio de libaneses e sempre as vejo brincando por aqui. Ora, toda criança é linda, então nunca fiz a inferência da beleza para a população jovem e adulta. Mas tanto molequinhos quanto jovens, adultos e 3ª idade, é um povo realmente muito belo.

Outra coisa legal dos libaneses é que sempre estão falando de novos negócios. Fábrica disso, loja daquilo e tudo mais. Lembro dos meus pais no Brasil nessas horas que, tais quais os libaneses, também estão sempre pensando em como arrancar leite de pedra (é essa a expressão?). Tem cada libanêsmilionário aqui, viu? Marcory Residentiel é cheio de Mercedes, BMWs, Pajeros e afins. Realmente, uma amostra de que empreendedorismo e trabalho duro por anos compensam em qualquer lugar. Não somente, os libaneses também me puseram a par de todos os babados do mundo árabe. Sabiam que alguns deles se reconhecem como o povo mais linguarudo e que as marroquinas são piriguetes do meio sarraceno? Sabiam também que o Kadafi da Líbia quer comprar a Shell por aqui e integrá-la à já sua OiLybia? Pois é. Também, se eu tiver notas grandes de Euro (tipo de 500 Euro), tem galera aqui na comunidade na comunidade libanesa que faz uma taxinha de câmbio camarada? Pois é, gente.

Os rapazes libaneses são o contrário dos rapazes marfinenses. Enquanto os últimos cantam uma menina como se fosse uma meretriz e depois ainda pedem para que elas lhes paguem um drinque ou coisa do tipo, os libaneses são do tipo que fazem serenata (convém explicar: a filha do meu anfitrião arrasava alguns corações por aqui e recebeu um arquivo de áudio .mp3 com uma música dedicada que o cara mesmo compôs, haha) e jamais aceitariam que a menina ou qualquer convidado que seja pagasse algo. Na primeira vez que comi no Achmed, vulgo “Vini Terranova”, eles se recusaram a aceitar meu pagamento. Nesse fim de semana, Abbas, o filho do gentil senhor que me hospeda, vai a uma praia altamente chique com seus primos e querem levar todos os intercambistas com eles. Ao perguntar quanto custaria o programa para que o pessoal pudesse avaliar se tinham condições de ir, eles disseram que nós não desembolsaríamos nada. Eles são tão gentis que eles não cogitam de modo algum não ter nada para oferecer a qualquer visitante que vá a suas casas. Eu sei que isso é simplesmente boa-educação, mas quem passou pelo que eu já tive de passar aqui vai é estar na iminência de verter lágrimas (haha) quando a hospitalidade libanesa lhes for apresentada (nada contra a antiga família, que foi super gentil comigo e ofereceram o que puderam, mas há certos padrões mínimos de higiene e segurança que devem ser atendidos, o que não foi o caso). Minha irmã no Brasil, que estuda justamente a administração hoteleira e por isso dá forte ênfase na hospitalidade e no fino trato com as visitas, amaria o mini-Líbano.

A comida deles também não somente é maravilhosa como é muito saudável. Tenho comido azeite de oliva extra-virgem todo dia. Também abundam em minha dieta tomates, hortaliças libanesas que se parecem muito com espinafre, coalhada, azeitonas, pão árabe (que não tem miolo e por isso é muito menos calórico que o pão francês), queijos franceses e libaneses, peru, iogurtes espanhóis e sucos naturais. Os efeitos da nova dieta são evidentes: estou muito mais disposto durante o dia e agüento o dia inteiro só com quatro ou cinco horas de sono. Quando minha dieta era na base do garba (para fazer, deve-se fritar o peixe com mandioca após ele haver apodrecido), do foutou (banana com mandioca), do foufou (inhame), atiéké (pó de mandioca) e de carnes estranhas (agoutie – literalmente: rato do mato – até que não é mal, mas não sustenta), eu sentia extrema fatiga ao longo do dia, além claro, de dores de barriga mil.

As refeições leves e saudáveis da comida árabe me permitem passar mais tempo acordado, tempo esse que uso para ler e para ouvir as histórias do Sr Reda, meu digníssimo anfitrião. Olha, dava para fazer um filme com a vida dele. Tendo ganhado e perdido muitas fortunas, ele já rodou o mundo e fez de tudo. Desde empreendimentos de centenas de milhares de dólares em sua vida recente a ter jogado futebol em equipes da primeira divisão de Serra Leoa(!!) quando era jovem. Ele mostra fotos de antigamente e o cara era realmente galã. As fotos mais legais são as dadécada de 80 quando ele está com uma jaqueta, óculos escuros e o cabelão anos 80. Tanto ele como seu filho Abbas – que é muito gente fina também – falam um português cristalino, mas com um leve sotaque pernambucano. É engraçado que a conversa entre os dois em árabe sempre é complementada com um “ôxi!” ou então um “vixe!”.

A Costa do Marfim agora é até possível de ser aproveitada. Voltar para uma casa com estrutura, com gente com muito amor para dar e ouvir árabe permeado de expressões nordestinas tem sido maravilhoso. Que o favor imerecido de Deus que me achou possa também achá-los.

Deus os abençoe.


« Que l'Éternel te bénisse, et qu'il te garde! » Nombres 6 :24


quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Intervalo nos Registros

Está com algum tempo que não posto, é verdade. Não tenho dado notícias por aqui mas estou sempre disponível por e-mail.

O motivo de meu silêncio é que, quando escrevo, eu boto no blog tudo o que eu sinto por esse povo, essa (sub)cultura e esse país. Assim sendo, temo que um blog cujo objetivo seja suscitar boas risadas irá, na verdade, arrancar desprezo por essa gente.

Mas não se preocupem! Agora que estou com os libaneses, está tudo muito melhor! A galera libanesa está planejando algumas coisas e pediram para que eu chamasse os intercambistas. Dessa forma, eles também serão beneficiados e receberam uma folga do modo de vida marfinense.

Bem, fiquem com Deus. Estou preparando algo legal para postar aqui. Devo fazê-lo em breve.

Graça e Paz

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato XX - Voltando a Pé e Assustando a Espiã


Registro de Viagem: Costa do Marfim

Relato XX – Voltando a Pé e Assustando a Candidata –18 de Janeiro a 20 de Janeiro

Na segunda-feira, dia 18, fomos eu e Wilfred a alguma reuniões na área comercial de um distrito chamado Treichville. A libanesa lá da empresa deu o não mais categórico e cruel que já ouvi em minha vida à nossa proposta de contrato. Estamos refazendo para propor-lhe um novo. De qualquer forma, o importante dessa história é que eu sempre saio de casa com o dinheiro contado e que, nesse dia, as reuniões no bairro longe foram avisadas pelo Sr Happy quando cheguei ao trabalho do mesmo dia às 08h00. O bandidão do Happy saiu do trabalho mais cedo, às 15h, quando eu não havia ainda retornado da maratona de reuniões e nem almoçado. Resultado, nada de reembolso, ou seja, nada de almoço e de táxi pra casa. Amarguei os 8 km de caminhada entre casa e o trabalho com o estômago roncando, suor encharcando minha camisa boa da Agnelli – escolhida especialmente para ir às reuniões desse dia – e cheirando a catinga da Lagune Ébrie. À noite, até sonhei com o chefinho. Sai pra lá!

Na terça, dia 19, recebi o reembolso devido. Fui a algumas reuniões e quando voltei à tarde (dessa vez, já devidamente alimentado), tinha uma mulher que queria ser entrevistada para ser nossa vendedora free-lance. Quem que teve que entrevistar? Quem é o estagiário mais moderno? Aêê! Eu mesmo! No melhor estilo “cut the crap” ocidental, pedi para que me desse suas qualificações, idade, experiência anterior e como ela havia conhecido a nossa empresa. Bem, a mulher fez um curso técnico de alguma coisa que já não me recordo, alegou trabalhar em tempo integral na secretaria de uma empresa alimentícia local e não quis revelar a idade, me chamou de mal-educado e deu risadinhas. “Madame, que l’age avez-vous?” – perguntei sério. Ela parou de rir e disse que tinha 30 anos. “Você ainda não respondeu como conheceu a AFCO” – ressaltei. Nisso, ela responde que foi por meio de uma amiga que trabalha na empresa Sunshine. Ora, a Sunshine é uma concorrente perigosíssima. Pensei logo que a mulher tinha vindo fazer espionagem (na Costa do Marfim, é máfia pura; foi assim que o Happy conseguiu a tabela de custos da concorrência). Já não gostei dela.

Perguntei, então, quanto ela queria de comissão. Ela respondeu que queria “o que a gente pudesse dar”. “0,001% está bom, então?” – perguntei. Ela recusou. Daí:

EU: Quanto você realmente quer?

CANDIDATA: Faça uma proposta. Pois, para mim, o mais importante é a experiência.

EU: Sei. 0,002% está bom?

(risos da candidata)

EU: Escute, Madame. Está na hora de levar essa entrevista a sério. Tenho quase 10 anos a menos que você, mas isso não é pro forma. Você pode achar que não falo de verdade quando ofereço 0,001%, mas tenha certeza que é. Agora, quanto você quer de comissão. E é interessante que passe a ser sincera.

CANDIDATA: Eu tenho uma família muito grande para sustentar. Muitos irmãos. Quanto você pode me dar?

EU: Você entende que me deu mais argumentos para manter a comissão baixa? Se você está em necessidade, terá que aceitar o quanto eu quiser dar. Sua última chance. Quanto você quer?

CANDIDATA: 10%.

(risos meus)

EU: 10%? Para alguém com sua pouca formação e falta de experiência na área? Dou-lhe 2,5%.

CANDIDATA: Mas é muito pouco!

EU: O que interessa não é a experiência? Eu praticamente pago para trabalhar aqui. Você ainda receberá 2,5%.

CANDIDATA: Mas aí não dá pra mim.

EU: Vamos fazer o seguinte. Você passará por um período teste de duas semanas. Sua comissão será de 4%. Se você apresentar resultados, poderemos negociar suas futuras comissões para cima. Volte amanhã para que eu possa treiná-la e você receberá nosso material. A que horas você pode?

CANDIDATA: 15h

EU: Alors, a demain 15 heures!


Hoje, quarta-feira, dia 20, já são 16h30 e a moça não apareceu. Eu, hein.


Deus os guarde.


PS: Fui informado agora, 20 minutos após a postagem, que a candidata ligou para o Sr Happy dizendo que, após refletir, decidiu não passar pelo período de teste e que desistia da vaga. AFCO é CAVEIRA!



« Heureux l'homme qui ne marche pas selon le conseil des méchants, Qui ne s'arrête pas sur la voie des pécheurs, Et qui ne s'assied pas en compagnie des moqueurs. » Sl 1 :1