segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato XII


Ler antes o Relato X e o Relato XI.

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Registro de Viagem: Costa do Marfim

Relato XII – Louvorzão e Praia – 27 de Dezembro

O culto de hoje foi conforme me haviam informado: seria um louange spécial (louvor especial). Durante duas horas, cantaram, gritaram, berraram, pularam e caíram, ou seja, tudo o que os marfinenses fazem em seu tempo livre (e boa parte das suas horas de trabalho), mas agora, aparentemente, para a glória do Altíssimo. Não sei houve pregação no culto de hoje, pois parti mais cedo. O fator que me motivou a sair de lá foi quando o coral passou 12 minutos – coincidiu de eu conferir o horário em meu celular no início e no fim do negócio – cantando “lá lá lá” (as mulheres) e “lô lô lô” (os homens) em diferentes ritmos, cadências e tons.

Bem, a praga pentecostal domina nesse país – e isso NÃO é juízo temerário – e, tal qual no Brasil, esse lixo carente de teologia e doutrina glorifica personalidades e feitos humanos no lugar de Deus. Todo cartaz pentecostal é como um cartaz de publicidade de show: “Venham! Pois quem vai falar é o fulano!” ou “Não percam o coral abençoado de não sei aonde” ou ainda “Venha receber o batismo de fogo do servo que curou não sei quantos doentes” e por aí vai. Na igreja em que tenho freqüentado, tem sido assim desde que o pastor com quem tive uma discussão se fez mais presente (da semana passada em diante) às ordens da igreja central. Respondendo, finalmente, à pergunta implícita: se não houve louvor a Jesus em 50 minutos de culto, mas louvor ao cantor convidado e ao seu coral monossilábico, tampouco haveria no tempo restante.

Também como no Brasil, domingo é o dia de maior idolatria "cristã" na Costa do Marfim. As pessoas fazem um parêntese de suas vidas mundanas e passam duas horas rendendo louvor à sua própria e idiossincrática idéia de deus que, de modo nenhum, condiz com o Deus bíblico. Os cultos regulares têm cerca de 150 pessoas. Hoje, devido à divulgação do “louange spécial”, a igreja transbordou de gente bradando o nome do Senhor. O versículo de Mateus 7:22 me veio à mente. Pois bem, decidi voltar pra casa, ouvir um sermão do Pr Paul Washer em meu computador, avançar em minha leitura de Lucas e louvar o verdadeiro Deus com os hinos do CC.

A praia, por sua vez, foi muito boa. Fica fora de Abidjan, numa cidade chamada Bassam e é uma jornada e tanto. Chegando lá, comprei um chapéu (muito sol e muito quente) e uma camisa da seleção da Costa do Marfim após acaloradas negociações com os ambulantes. Chegou uma hora que eu disse pra eles que queria o preço pra preto, não pra branco. Eles diziam que não dava e eu replicava com um au revoir e fazia menção de ir embora, aí eles abaixavam. No fim das contas, comprei o chapéu de 4000 francos por 2000 francos e a camiseta de 8000 francos por 3000 francos. Ora, mais.

Na praia, andei pela orla e entrei nos hotéis pegando o cartão de visita dos proprietários – quase todos são franceses – e pretendo dar esses cartões pra que a AIESEC daqui possa abordá-los. Quem sabe eles fecham negócio e ajuda a pagar a dívida que eles têm com a AIESEC International. Além de mim e de Wilfred, a estagiária da Lituânia também veio e, quando estávamos indo embora, encontramos outros dois AIESECos brancos perdidos por aqui: um polonês e uma cingapurana (isso está certo?). Combinamos de nos encontrar na segunda, no restaurante brasileiro.

Eles também são pra lá de aventureiros e me aceitaram na expedição deles que passará por Gana, Togo, Burkina Faso e Mali. Só tenho agora que conferir o orçamento e as datas. Mas isso será discutido amanhã à noite. Estou muito empolgado!

Bem, cheguei agora dessa jornada e estou muito exausto. Vou tomar banho e dormir. Deus os guarde.

« C'est l'esprit qui vivifie; la chair ne sert de rien. Les paroles que je vous ai dites sont esprit et vie. » - Jean 6 : 63

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato XI - O Bolo, Indignação e o Duelo Galinácio


Registro de Viagem: Costa do Marfim

Relato X – Bolo, Indignação e o Duelo Galinácio– 26 de Dezembro

A viagem pra Niamé foi cancelada porque o familiar que nos receberia está doente. Eu também não estou muito bem. O nariz entupido resistiu à semana inteira e perdura agora no fim de semana. Além disso, os mosquitos marfinenses têm feito a festa com o sangue do le blanc aqui a despeito de seus esforços com repelentes e afins. Por algum motivo, eles só atacam minha perna direita. Mostrei pros pais da família e, pelo que entendi, a mãe vai fazer um repelente com as ervas medicinais da casa e eles trocaram a fronha do travesseiro e a colcha da cama. Eles são muito gentis e fazem de tudo para me deixar sadio e confortável, graças a Deus.

Com a viagem cancelada, Wilfred arranjou um programa pra gente fazer. Aqui em Yopougon, a irmã do presidente da AIESEC Côte D’Ivoire, Levy, se casou hoje, sábado, e fomos convidados. Combinamos que nos entraríamos no terminal de Yopougon às 11h da manhã e de lá partiríamos juntos para o casamento. No horário combinado, eu e Wilfred estávamos lá, mas não o presidente. Às 12h15, ligamos para Levy para saber onde ele estava, pois esperávamos desde antes das 11h. Ele disse que ia tomar banho para sair. Decidimos, então, ir ver apartamentos para alugar, pois a noiva de Wilfred e sua filha vão se mudar para cá. Por volta das 12h40, Levy liga e pergunta onde estávamos. Wilfred pede para que ele espere quinze minutos, pois estávamos vendo um apartamento. Levy diz que não pode esperar e que vai sem nós. Ou seja, esperamos quase duas horas pelo bonitão, mas ele não nos pode esperar por quinze minutos.

A falta de pontualidade, pode-se observar, é tão endêmica na Costa do Marfim quanto a preguiça dos profissionais, a corrupção das autoridades e a palermice da polícia. Não há nada, friso, absolutamente NADA, nesse país que comece no horário. Empresas, escolas, aeroporto, órgãos do governo e conferências da AIESEC. Tudo se atrasa e não são apenas “quinze minutinhos”. Os atrasos daqui são de 50 minutos pra lá. Aliás, em relação a AIESEC, nota-se uma verdadeira diferença entre o escritório do qual faço parte – AIESEC na FGV – e a AIESEC em Côte D’Ivoire. No escritório da FGV, somos todos muito novos, mas levamos o trabalho a sério. Levamos os intercambistas para conhecer a cidade, nos comunicamos com eles com freqüência para saber como estão se adaptando ao novo ambiente, escolhemos empresas boas para que eles trabalhem (não empresas em que o INSS local ameaça fechar devido a falta de pagamento dos direitos dos empregados) e lhes enviamos avaliações no início, no meio e no fim do intercâmbio para saber como eles avaliam o nosso suporte a eles. É com orgulho que digo que a AIESEC na FGV prima pela qualidade. A AIESEC aqui, por outro lado, é praticamente inexistente pra mim. NUNCA recebi uma avaliação deles para responder, NUNCA me fizeram uma ligação para saber como estou e NUNCA me levaram para fazer o tour da cidade. Pelas regras internas da AIESEC Internacional, uma hora haverá alguma avaliação para eu preencher com fins de avaliar a qualidade de serviço para com o intercambista. Quando eu for preencher a avaliação, não serei mau com a AIESEC daqui, serei justo e isso bastará.

Graças a Deus não preciso da AIESEC daqui. Achei favor a Seus olhos e Ele me pôs numa família maravilhosa e com um vizinho-colega de trabalho-amigo muito prestativo. Não fosse por Wilfred e pela família, não sei como estaria minha adaptação aqui. O escritório da FGV, na verdade, está me dando mais suporte do que a AIESEC local! A Diretora de Intercâmbio, Mariana Hermanny, ciente da tendência malandra do meu chefe, já se prontificou a tratar com a AIESEC Côte D’Ivoire caso ele atrase meu salário. Apesar de eu apreciar a prestatividade e a iniciativa, duvido muito que a AIESEC daqui possa fazer muita coisa, pois eles são irresponsáveis financeiramente e devem 900’000 francos (=US$20’000) pra AIESEC International. Entendam que não estou murmurando ou insatisfeito com o fato de estar onde estou, o motivo de minha indignação é que eu estou cumprindo um acordo escrito e a outra parte não está. Graças a Deus, ele tem providenciado mais do que eu preciso, pois sua graça me basta.

De qualquer forma, voltando ao cotidiano, joguei bola com a molecada, levei uma queda após cerca de 20 crianças pularem no coitado do le blanc e presenciei um duelo de frangos. Esse último merece uma rápida menção: um frango ciscava no local de outro frango e o frango proprietário, sentindo-se injuriado pelo frango invasor, botou-o pra correr. Voaram penas e cacarejos pra todo lado. Nunca vi um frango tão zangado por ter sua “propriedade” invadida.

Sujo, suado e cansado, tomei banho, fiz ainda algumas brincadeiras de roda com as crianças e vim jantar no quarto, onde, no momento, também escrevo este relato. Depois, irei avançar em minha leitura de Lucas e vou dormir.

Obrigado pelas orações e que Deus os abençoe como tem abençoado a mim.

« Nul ne peut venir à moi, si le Père qui m'a envoyé ne l'attire; et je le ressusciterai au dernier jour » - Jean 6 :44

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato X - Natal, Casamenteiras e Empreendedorismo



Registro de Viagem: Costa do Marfim

Relato X – Natal, Casamenteiras e Curtas – 24 e 25 de Dezembro

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24/12

Trabalhei a véspera de Natal. Lá pelas 15h, a empresa estava vazia e só sobrara o chefe e a equipe de MKT (eu e Wilfred). Perguntamos ao chefe onde estava todo mundo e ele disse que o dia 24 na Costa do Marfim era meio expediente e que se esquecera de nos avisar. Cientes disso, começamos a arrumar nossas coisas para partir a Yopougon. Wilfred muito feliz; eu, nem tanto. Eu realmente não me importaria de passar o Natal na empresa, não somente porque internet me permite usar o skype pra falar com minha família e minha digníssima, mas também por causa do banheiro. Sabendo que só teria banheiro novamente na segunda-feira, praticamente tomei um banho na pia, fiz a barba, escovei os dentes cinco vezes (escovo os dentes em casa, mas é num copo, não com água corrente) e fiz número 2 três vezes.

Foi difícil arranjar um táxi que quisesse ir a Yopougon na véspera de Natal. Muito difícil. Quando finalmente um taxista atendeu ao sinal de parada de Wilfred, saí de trás do poste apenas para descobrir que aquele táxi era o calhambeque mais destruído e mais feio que eu já havia visto em toda a minha vida. Quando ele estava em movimento, eu olhava pra trás e via o rastro de fumaça preta que o veículo deixava. Era como se ele rodasse a diesel. Não sei o modelo do carro, mas era uma daquelas porcarias indianas; um Tata, um Mazda, sei lá. As janelas não abaixavam e isso era particularmente ruim porque a Costa do Marfim é muito quente entre às 22h e às 05h e das 05h às 22h o calor é de forma tal que ultrapassa a barreira do insuportável. Além disso, o taxista fumava incessantemente e cuspia tudo pra trás, onde estava o le blanc e dirigia de forma muito imprudente. Ah, ele ainda era muçulmano. Fiquei extremamente grato a Deus de chegar em Yopougon em segurança e poder sair daquela carroça destruída.

Chegando em casa, tomei um banho, recuperei as forças e fui para o culto de Natal dos Batistas. O culto estava vazio. O pessoal aqui é muito parecido com o Brasil até nesse sentido: no domingo, todo mundo levanta os braços e diz “glória a Deus!”. Na hora de celebrar o nascimento do Redentor, está todo mundo por aí. As outras semelhanças que notei são majoritariamente extra-eclesiásticas e dizem respeito a gosto de entretenimento (música alta, muita dança, cerveja e muvuca). Voltei do culto e a família estava toda pronta pra ir à missa e depois à farra também. Recusei o convite, mas a mais insistente (Cherone) tentava ainda a me convencer a ir. Na medida em que meu francês permitia, expliquei que, por ser cristão, eu não podia participar de rituais idólatras e nem de uma compilação de tradições pagãs declaradas aceitáveis pelo romanismo com fins de atrair esses mesmos pagãos para a Igreja no dia simbólico do nascimento do Redentor da humanidade. Ela compreendeu e disse que ia pra festa mesmo assim. “D’Accord, à bientôt”, disse eu, e me recolhi.

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25/12

Hoje fui visitar três famílias da Igreja Batista. Quando eu digo família, não se trata de pai, mãe e filhos, mas também de primos de 4º grau, companheiros de futebol e tia-avó do vizinho. Em todas as três famílias, as mulheres tentaram me convencer a me casar com alguma jovem do clã e levá-la comigo ao Brasil. Isso é novidade, pois, até hoje, apenas tinham me oferecido bebês para adotar e para levar comigo ao Brasil. Recusei, falei da patroa e mostrei a foto. Toda mãe aqui é uma espécie de casamenteira.

O mais interessante do dia, contudo, foram as coisas que presenciei durante o traslado do cortiço de uma família a outra. Primeiramente, deixem-me falar do mercado local, que se chama Carrefour, mas não tem ligação nenhuma com a grande rede, mas é porque fica numa encruzilhada (Carrefour = encruzilhada). As coisas mais nojentas de minha vida eu vi hoje à venda. Havia moscas por todo lado e não creio que tenha havido sequer uma das frutas (muitas estavam podres) que não servia de berçário de insetos. Os peixes, então, eram uma nojeira só. Havia peixe sem olhos e, nesse “vão”, os insetos confortavelmente se acomodavam.

Passado o mercado, chegamos num campo de futebol. Não havia grama, mas havia duas traves pequenas e dois times uniformizados de gente variando entre uns 13 e 25 anos. Comecei a filmar o jogo. Quando fiz isso, os moleques da torcida se afastaram para me dar melhor visão e os jogadores começaram a mostrar o seu melhor. Deviam pensar que se tratava de algum olheiro, afinal era um le blanc com uma câmera (e lentes transition!). Esperei o fim do jogo e bati uma bola com o pessoal. Cansei logo não apenas devido à minha falta de preparo físico, mas por causa do calor. O termômetro da enfermaria local apontou 39º desde as 06h30. Qualquer atividade aqui fatiga muito, o que em parte explica o fato de ter muita gente encostada nas paredes por aí tirando um cochilo (mas a outra parte, que é a maior, é explicada pela mais pura preguiça mesmo).

A terceira coisa legal foi um negócio que um muçulmano aqui abriu. Ele tem um banheiro moderno e aluga espaço! O nome do negócio é Toilette Publique Moderne e é até bonzinho o lugar. Tem preço pra tudo, xixi (25 francos), cocô na latrina (50 francos), cocô no vaso sanitário (75 francos; só tem um desses porque não é pra qualquer um, bem!), ducha (100 francos) e água quente (mais 100 francos). Além disso, esse empreendedor tem uma mesquita exatamente ao lado do Toilette Publique Moderne e aluga espaço na mesquita e há preços diferenciados segundo a qualidade do tapete em que o fiel rezará para Alá. Tirei fotos do local (em breve, no Orkut!) e ele me permitiu fazer um xixi (test-drive, sabem como é) de cortesia. Conversei um pouco com o muçulmano e, bom vendedor que era, disse que na próxima vez que me visse eu fosse seu cliente. Olha, se a comida daqui continuar apimentada e temperada como está, não duvido que eu e esse cara cheguemos a nos ver com grande freqüência. Vou pechinchar com ele pra ver se ele faz um combo: tantos cocôs (no vaso, não na latrina) e tantos banhos por semana à vista tem quanto de desconto?

Bem, de volta ao cortiço, repousei bastante, pois esse mormaço e esse calor realmente enfadam você no menor esforço. Terminei Marcos e li precisamente a passagem de Lucas que trata do Natal. Vou tomar banho, jantar e então me recolherei, pois amanhã parto para Niamé, a village que tem aqui perto.

Obrigado pelas orações e Deus os abençoe.

« C’est qu’aujourd’hui, dans le ville de David, vous est né un Sauveur, qui est le Christ, le Seigneur » - Luc 2 :11