quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato V - Cotidiano



Registro de Viagem: Costa do Marfim
Relato V – Cotidiano – 15 e 16 de Dezembro

Após o choque inicial já relatado, as coisas começam a se normalizar, se é que se pode usar essa palavra para o estilo de vida marfinense! Antes de prosseguir com o relato, eu gostaria que os mais próximos (família e digníssima Lili) ficassem tranqüilos com a minha estadia aqui. Alguns de vocês estão se exasperando por causa da condição do país e da casa em que estou morando, mas asseguro que (1) estou muito bem no desfruto da graça de Deus e (2) voltarei para casa em fevereiro, se Deus quiser. Fiquem tranqüilos e relaxem. Outra coisa, como a internet só pega na sala do chefe, não tem como eu me comunicar com vocês do modo que eu gostaria, somente dá pra ler e mandar e-mails curtos, principalmente no que diz respeito a notas da faculdade, enquanto o Sr Happy Happy (esse é o nome do chefe, sem brincadeira) não olha. Então minha comunicação com vocês se dará mais aqui pelo blog mesmo, apesar de eu ter comprado um celular e ligar vez por outra pra aí (é meio caro e não tem telefone em Yopougon).

Pois bem, aqui vai um pouco da rotina que começa a se delinear. Acordo um pouco antes das 06h da manhã e vou tomar banho. Todo mundo aqui no cortiço já está de pé e animado. Pego minha câmera e bato algumas fotos. Prometo que assim que chegar o fim de semana (ou o chefe der uma saidinha) eu ponho tudo no Orkut! Tem dois bebês aqui no cortiço: o Chrisso (acho que se escreve assim) e a Roxanne. Vejo a Roxanne pela janela ela está sempre toda sorridente, mas quando eu apareço ela rasteja pra saia da mãe e solta o choro. Eu assustei já várias crianças aqui, principalmente as mais novas. Ainda ontem passei na rua e uma delas gritou em alerta pras outras regardez le blanc! (=olha o branco!). Eu dou tchau e cumprimento, mas somente as mais corajosas respondem ao cumprimento dessa terrível aberração sem cor (eu).

Chego ao trabalho um pouco antes das 08h e não dá pra fazer muita coisa. Minha função é de prospecção, o que implica pesquisa, que conseguintemente implica informações. A empresa não tem sequer os e-mails dos seus principais clientes, então, nada de dados próprios. A propósito, é exatamente isso que eu e Wilfred estamos tentando mudar. Temos um ambicioso plano de marketing que foi aprovado pelo chefe pra fazer a cultura da empresa se modernizar um pouco (o portfólio de vendas da AIESEC FGV está servindo de base para o portfólio que eu estou desenvolvendo por aqui; valeu AIESEC!). De qualquer forma, para conseguir dados eu posso ou ir à biblioteca – que não apenas desconheço onde fica, como também são dados pouco relevantes para a missão corporativa que temos – ou recorrer ao Google. Bem, como se sabe, não temos internet em nossa saleta. Ou seja, até o chefe chegar, nós adiantamos tudo que depende somente de nós, mas isso não é tanta coisa assim.

Depois que ele chega, corremos pra falar com ele antes que ele torne-se inacessível – o pilantra sai e tranca o escritório, que é onde está a internet – e pedimos para que ele delegue certas tarefas para os funcionários de base que farão entregas aos clientes. Essas tarefas são recolher dados dos clientes como endereço, telefone e e-mail. Acreditem, somente agora a internet está se popularizando na Costa do Marfim e nem todos ainda fornecem dados ou têm sites (o nosso próprio site – afcoexpress.com – ficou pronto a menos de um mês). Se o chefe não delegar a tarefa, não será cumprida. Na mente dos funcionários, eles não trabalham para AFCO, mas para Jean Marie Happy Happy (morro de rir sempre que falo esse nome).

Lá pelo meio-dia, Wilfred e eu vamos almoçar. A comida é bem barata, mas meio estranha. Sempre peço o prato que não tem carne ou, se tiver, que seja bife de gado. Hoje comi cuscuz, que é um pouco diferente do nosso. Wilfred comeu um tipo de porco selvagem e cuspiu as munições com que caçaram o porco. É isso mesmo, Wilfred mastigava tranquilamente e de vez em quando cuspia as bolinhas de chumbo pra fora. Evidentemente, o porco selvagem foi abatido com um cartucho duma espingarda calibre 12. O resto do dia consiste basicamente de nós dois tentando fazer milagre, pois o marketing inteiro da empresa está nas mãos de dois estagiários.

Na volta, pegamos o táxi naquele velho sistema de lotação. Chegando à Prémière Pont, em Yopougon, descemos e voltamos pra casa. Sei que chegamos sempre por volta das 18h porque os muçulmanos estão entoando suas rezas cantadas. Tem bastante islão por aqui e contei umas 12 mesquitas no percurso entre o trabalho e o cortiço. No caminho de volta passa em frente à Igreja Batista em que tenho congregado e já conheço algumas pessoas na região. Contrariamente às outras crianças, os filhos dos irmãos vêm me abraçar quando passo. São as coisas mais lindas!

Chegando em casa, a Roxanne solta o berreiro e todo mundo sabe que cheguei. Todos me desejam bon arrivé, algo como “boa chegada em casa”. Vou pro quarto, ligo o ventilador no 3 (aqui é mais quente que Fortaleza) e tiro o paletó e a gravata. Pego minhas coisas do banho e lá me vou à salle de bain cantarolando algum hino do CC. Depois janto mamão e laranjas, escrevo algo pro blog, leio e estudo e mais um dia vai chegando ao fim!

Saindo do assunto rotina e entrando no de curiosidades marfinenses, há algumas coisas interessantes que gostaria de compartilhar com vocês. Primeiramente, todo mundo vende comida. Peixe, carne, pão, ovo etc. Tudo porcamente exposto ao ar livre. O pessoal por aqui também come enguia e as etnias que vieram para cá de Camarões, cobra. Oferecem para que eu prove, mas eu educadamente recuso. Sinceramente, aquela enguia estirada na mesa não me desperta o apetite. Esse fato de todo mundo vender comida me lembrou o relato da França dos Escritos Políticos, de Maquiavel. Ele zomba que na França de seu tempo todo mundo passa fome, mas são todos comerciantes de trigo. Ironicamente, os únicos que têm dinheiro para comprar trigo – os nobres – não o fazem porque eles próprios o cultivam. Assim, numa terra em que a produção de trigo é abundante há gente passando fome. A África do século XXI tem muito a ver com a França do século XV.

A segunda coisa diferente que notei até agora é que é falta de educação entregar coisas com a mão esquerda, é uma verdadeira ofensa. Fui pagar o táxi e tinha a mochila na mão direita, então tirei a nota de 1000 francos do paletó e entreguei com a mão esquerda. O taxista respondeu pouvez-vous changer, monsieur? (=poderia trocar, senhor?). Como a corrida é 600 francos, lá fui eu atrás de moeda. Vendo isso, Wilfred disse que o trocar que ele queria não era dinheiro trocado, mas que eu trocasse a mão para pagar-lhe. Mazóia!

A terceira coisa diferente é algo que no edifício em que trabalho há uma parte residencial que é dominada por libaneses. Quando saio do trabalho às 17h, vejo um bocado de criancinha branquela do cabelo escuro igual a mim brincando no pátio e sendo observadas por suas babás (todas negras). Abidjan é assim, dependendo do distrito há um povo dominante. Onde estou é um distrito de libaneses, mas há ainda o de franceses e o de senegaleses.

A quarta coisa curiosa em relação aos marfinenses: onde quer que eu vá, há uma bandeira americana com as fotos do presidente Barack Obama e do Michael King Jr (vulgo Martin Luther King Jr). Por aqui, há um forte senso de, como eles mesmo dizem, négritude.

Por fim – e isso não é uma curiosidade, mas apenas um atestado da verdade – a beleza de minha digníssima Lili tem reconhecimento nesse continente também. Mostro nossa famosa fotinha da carteira e todo mundo fica Très bien, Natóón! (é assim que pronunciam meu nome) ou Félicitations!. A galera aqui pode ter umas bizarrices como comer com as mãos e beber com talher, mas reconhecem a verdadeira beleza quando lhes é apresentada! Lili, te amo muito e to morrendo de saudades!

Bem, há ainda muita coisa interessante para falar, mas ficará para as postagens posteriores, pois nem quero ser muito chato e demorado com vocês e também acabou a força e o laptop ta na bateria. Forte abraço a todos e muito obrigado pelas orações.

Que Deus os guarde.

Jesus lui répondit: « Je suis Le chemin, je suis le vérité, je suis la vie. Personne ne peu aller au Père autrement que par moi » - Jean 14 :6

6 comentários:

Ligia Cerqueira disse...

Também te amo, Natóón!
Depois quero ouvir todas as histórias pessoalmente! ;)

Ligia Cerqueira disse...

A criancinha da foto é o Chrisso? Que vontade de apertar essa bochecha!

Unknown disse...

Moleque doido! Abraços da Teacher Flávia.

Natan Cerqueira disse...

É o Chrisso, sim!

Sarinha! disse...

Concordo com a Lili, dá vontade de apertar a bochecha do Chrisso!

E eu tb riria do nome do meu chefe, caso fosse estranho desse jeito!heoiaheiahoe

Te amo, lindão!

Daniel e Gláucia disse...

Sente saudades das pessoas ( não do lugar) com quem conviveu no primeiro mês lá no cortiço? Quem?