sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Registro de Viagem à Costa do Marfim: Relato XXVII - Último Relato

Registro de Viagem: Costa do Marfim

Relato XXVII – Volta Antecipada – 14 a 19 de Fevereiro

Acabou. Estou em São Paulo, onde, apesar dos pesares, não tenho que me preocupar com policiais munidos de AK-47 me extorquindo propina nem muito menos com a ameaça de guerra civil.

Sei que demorei a escrever esse post que fecha o relato de minha experiência do outro lado do oceano, mas vocês devem me entender. Cheguei ao meu flat em São Paulo tarde da noite e exausto. Cedo do dia seguinte, parti para ver minha digníssima. Inclusive, foi agora durante a semana do carnaval que fiz aniversário de três anos de namoro com a futura mãe dos meus filhos. Então, numa semana com uma data especial, sem aulas, com o tão esperado cafuné e a massagem no pé, realmente me faltou estímulo para sair da ternura da minha Lili para vir aqui escrever algo sobre a viagem. Mas aqui vamos nós.

Consegui sair do aeroporto Felix Houphouet Boigny, em Abdijan, no vôo da Air France das 23h após um check-in extremamente irritante. A tal da “hospitalidade marfinense” é o segundo maior mito do país, atrás apenas do lema nacional: “União, Disciplina e Trabalho”. A moça dos raios-X ficou com um meu desodorante (que não excedia os 100 ml permitidos), levou embora o meu creme de barbear e – isso foi o que irritou – queria levar minha câmera também. Após muita discussão, acabaram não fazendo nada. Não obstante, chegou uma hora em que o francês carregado de sotaque tribal daquela mulher quase impossibilitou nossa discussão e perguntei se ela falava inglês, ao que ela respondeu de forma irada e escandalosa que aquele era o país dela e eu que aprendesse o francês. Já vi bastante desse tipo de gente nos aeroportos brasileiros. Funcionários rudes que maltratam o visitante estrangeiro e alicerçam seu comportamento num nacionalismo estúpido (redundância) e num patético orgulho de sua própria ignorância. Depois dessa, sabendo que não há lei nessa terra ridícula, paguei-lhe 5000 francos para que não mais direcionasse a palavra a mim e me deixasse em paz com minha câmera.

Duas coisas interessantes sobre os marfinenses (e sobre os outros africanos que conheci também). Primeiramente, qualquer mínima autoridade que lhes é dada é usada invariavelmente para explorar outra pessoa. Seja o guarda com seu fuzil kalashnikov na rua, seja o motorista do táxi com o passageiro, seja um mestre com seu aprendia, seja a mulher da segurança do aeroporto. Eles funcionam na base “se consigo, devo”. Se tenho meios para roubar, roubarei. Se tenho meios para burlar, burlarei. São escravos duma vontade sádica de fazer o mal aos outros. A segunda coisa é uma conseqüência da mesquinhez dessas pessoas, elas se vendem por quase nada. Os funcionários na AFCO vendiam informações nossas para a concorrência a preço de banana, os soldados na rua deixam os outros em paz por 500 francos (se for da mesma etnia), 1000 francos (se for branco) e 2000 (se for de etnia diferente). Se há algo que aprendi nessa minha experiência, foi exatamente como não ser, agir e pensar.

Embarquei no vôo para Paris cansado, suado e com uma sensação de incômodo que somente se foi quando a aeronave deixou o solo. O vôo foi bem tranqüilo, mas dormi muito pouco. A única parte realmente ruim foi que minha poltrona era a 48L, ou seja, a última do lado oposto ao da porta de entrada e saída, o que significava que meu desembarque em Paris seria somente após os numerosos africanos recolherem suas inúmeras e imensas bagagens de mão. Não sei como o pessoal conseguiu fazer aquelas malas todas serem aceitas como bagagem de mão.

Chegamos a Paris no dia 14 um pouco antes das 06h, estava 0ºC. Eu havia esquecido completamente que era inverno na Europa, aí nem me preocupei em levar casaco. Assim, eu trajava apenas uma leve camiseta branca. O único vôo que chega a essa hora daquele terminal era o procedente de Abidjan. Então, todo mundo das lojas que já se encontravam abertas sabiam que todos nós vínhamos do país cujo presidente havia dado um golpe no dia anterior e olhavam-nos com curiosidade e alguns faziam perguntas sobre a situação no país. De qualquer forma, tratei logo de ir ao freeshop do Charles de Gaulle comprar uns presentes. Essa foi engraçada, pois quando eu disse pra mulher da loja que queria um presente para minha namorada e ela me viu com camiseta leve, chapéu, barba por fazer e semblante bem cansado, ela deve me ter associado a algum tipo de explorador da África muito endinheirado, pois a tia veio logo me mostrar com um largo sorriso de “é hoje que minha comissão decola!” jóias nos singelos valores de 2000 euro. Desci a vendedora pra realidade e comprei umas coisinhas beeeeeeeeeeeem mais humildes.

Foi chegando a hora de embarcar pro vôo ao Rio de Janeiro e comecei a escutar um zumbido familiar. O zumbido revelou-se chiado e conheci um sem número de cariocas. Cada um contava sobre seus destinos procedentes: China, Indonésia, Alemanha, Rússia e tal. Contei um pouco sobre a Costa do Marfim e perguntaram se meus pais tinham aprovado a idéia. Hahaha
O vôo pro Rio foi bem melhor, apesar de ser durante o dia e ser um vôo bem longo. Assisti Friends e os Simpsons até não agüentar mais. Fiz amizade com as crianças de uma família francesa que iam passar uma temporada no Rio. Moleques silenciosos e bem educados que diziam “obrigado” pra tudo e me desejavam “bon apetit” sempre que eu ía comer alguma coisa. Só o filho do meio, Hugo, era meio alterado e ficava socando a cadeira da frente enquanto assistia aos filmes de ação disponíveis no catálogo da Air France. Chegando ao Rio, peguei as malas, despachei-as na TAM e cheguei.

Bem, essa foi a jornada de volta. Enquanto isso, em Abidjan, a oposição fez alguns protestos menores, que foram devidamente dispersados pelo governo. Como a mídia é dominada pelo presidente, não se sabe ao certo o que é verdade e o que é mentira. Eu sei, contudo, que o site abidjan.net é a fonte de informações preferidas dos franceses e dos libaneses e, por encontrar notícias sobre a oposição lá, imagino que seja o meio mais próximo da parcialidade. Publicaram a declaração da coalizão de oposição que a autoridade do presidente atual não é mais formalmente reconhecida, o pedido para os ativistas dos partidos manterem-se fiéis às novas diretrizes e a conclamação para as forças armadas do país a não sucumbirem ante a “ilegitimidade”. Só sei que estou feliz por ter saído de lá.

E com esse post, termino meus relatos. Não achei que chegaria aos 27, mas eis que chegou!

Agradeço aos meus pais, minha namorada e minha irmã pelo apoio. Agradeço ao restante da família e aos irmãos pelas orações. Agradeço ao escritório da AIESEC na FGV-SP pelas orientações. Agradeço também a magnífica demonstração de hospitalidade da família Mourtada na Costa do Marfim. Acima de tudo, agradeço a Deus por ter me mantido seguro e saudável num país perigoso e cheio de doenças.

Deus os guarde como Ele guardou a mim.

« Sachez que l'Éternel est Dieu! C'est lui qui nous a faits, et nous lui appartenons; Nous sommes son peuple, et le troupeau de son pâturage. » Psaume 100 :3

2 comentários:

Ligia Cerqueira disse...

A melhor parte da história! =D

Daniel e Gláucia disse...

É meu filho, tudo terminou bem, graças a Deus! Estamos orgulhosos de você, principalmente de como conseguiu ultrapassar a tantas barreiras culturais. Logo, logo estará pronto pra outra aventura. Estaremos sempre pronto a apoiá-lo, mais por favor, escolha um local mais seguro e com mais condição de higiene. Te amamos muito!!