
Corredor do hortifruti, eu com meu carrinho de compras, clientes escolhendo o que comprar, um empregado organiza a parte dos tomates e cebolas.
Chega um senhor visivelmente acima do peso, com a barriga bastante em evidência com aquela camisa amarela enfiada para dentro da calça acima do umbigo, com ares superiores. Ele se abaixa e pega um tomate no chão e o entrega para o empregado, que o recebe e põe no devido lugar.
Nada fora do comum, porém, o que eu não esperava - muito menos o pobre empregado do mercado - foi que a queda do tomate havia sido a deixa para que esse mesmo senhor roliço se pronunciasse.
“Cai bastante, né?" - perguntou o senhor. "Sim", respondeu o empregado de forma automática e continuando o trabalho. Não contente e querendo puxar mais papo, o senhor perguntou "o povo derruba muito isso, não é?", com ênfase especialmente pejorativa na palavra "povo". O empregado reagiu a essa pergunta como o fez à primeira.
Comecei a atentar mais ao que estava ocorrendo. Até então, uma gentil senhora escolhendo beterrabas e um pai implorando para a filha parar de chorar também ocupavam minha atenção.
Vendo que o empregado continuava concentrado na arrumação dos tomates e cebolas, o senhor lançou mão de um último recurso: tomou o tomate que o empregado tinha na mão(!) e passou a fazer perguntas em forma de declamações. "O povo brasileiro merece viver numa pocilga! Como é que as pessoas vêm aqui e derrubam essas coisas? Bando de gente sem educação!"
Enquanto o volume de sua voz aumentava e a coloração de suas gordas bochechas mudavam de um rosa normal para um vermelho vivo, o pobre empregado tentava em vão responder ao perguntado pelo senhor - uma vez que este o interrompia com novas indagações - com fins de voltar logo ao trabalho.
"É por isso que a solução pra esse povo é DI-TA-DU-RA", disse o senhor falando a última palavra bem alto e sílaba por sílaba e erguendo o tomate por sobre sua cabeça.
Ele continuou: "Pois é, amigo, liberdade é pra povo civilizado, não pra povinho sem cultura igual ao nosso". Fiquei abismado com a pedância desse homem. Como será que alguém se acha capaz de diagnosticar o "distúrbio" nacional (falta de cultura) e propor uma solução (supressão total das liberdades individuais) valendo-se apenas de um tomate e tendo como ouvinte o desinteressado organizador do hortifruti? Ao lixo com Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, Enzo Faletto e Fernando Henrique Cardoso. Precisamos é do teórico do tomate.
A reflexão registrada acima me adveio rapidamente, mas decidi guardá-la comigo para essa hora. De qualquer forma, voltemos ao nosso herói.
O discurso inflamado prosseguia. A senhora pára de escolher as beterrabas e presta atenção. A menina cessa o choro. O pai tem o semblante feliz por saber que o escândalo iminente no mercado não seria culpa de sua prole. Enfim.
Um supervisor, ouvindo a gritaria, achou que o empregado tivesse feito algo contra o senhor e foi correndo até a cena. A aproximação do supervisor fez nosso querido orador se dar conta da papelão que estava fazendo, atraindo olhares de todo o recinto, e calou-se. Ele se despede do empregado, em cujos lábios pude ler silenciosas (e impublicáveis) palavras referentes ao seu locutor.
Ciente do ridículo que fizera de si, mas sem dar-se por vencido, o senhor sai do hortifruti reiterando a necessidade do estabelecimento de uma ditadura no país e busca aquiescência dos ouvintes.
Antes de virar definitivamente para outro setor do mercado, ele olha para mim, que já havia voltado a escolher dentre as bananas-maçã quais delas viriam pro meu carrinho, e pergunta: "é ou não é?"
Eu, fortemente: "Éééé."
Um comentário:
VocÊ deveria ter dito o que pensou . Não é?
Porém infelizmente o ser humano a cada dia mais sente-se pressionado a tentar corrigir falhas num sistema cada vez mais desigual . a atitude do Sr. foi repentina e de ira , sem ao menos pensar que aquele empregado (não desemrecendo) estava ganhando o salário dele justamente para que outros viessem desaruma-los (tomates) mais foi engraçado o texto , por´me deve ser reflitido que no mercado alguns sujam para que outros limpem .. principalmente na ditadura
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