domingo, 10 de maio de 2009

Incoerência coerente?


Se há algo que vem saindo de moda, esse algo é Deus. Via de regra, as pessoas podem se auto-declarar pertencentes a alguma religião, contudo, a verdadeira fé, a crença inabalável de que um ser superior existe, é visto como atitude antiquada e objeto de escárnio. O campo da fé migrou do conceito do Ser superior para a ciência, ferramenta que tem sido a preferida nas tentativas de desvendar os aspectos da vida humana e seu derredor. A crítica reside, principalmente, no fato de fiéis terem certeza de coisas vindouras e convicção no que não se vê per se. Contudo, a crítica aos crentes no que diz respeito a acreditarem em idéias impossíveis de serem provadas cientificamente é algo que, se bem analisada, funciona como um bumerangue e retorna batendo naquele que a proferiu.

Analisemos a matemática. Dado que a ciência presume a matemática como verdadeira, é seguro afirmar que a matemática precede a ciência (1). Além disso, a matemática é composta de uma série de conceitos primitivos, fundamentais e axiomáticos (2) tais quais pontos, números, arestas e planos. Esses conceitos são simplesmente aceitos e são auto-explicativos. A lógica interna da matemática é magnificamente coerente (3) e, como ela é pressuposta pela ciência, tentar prová-la cientificamente seria argumentar em círculos, a famosa petição de princípio, a falácia da lógica informal em que a conclusão é uma mera repetição da premissa maior. Ora, se toda a vastidão da matemática só pode ser explorada se certos princípios fundamentais foram inquestionavelmente aceitos e sendo a própria matemática impossível de ser cientificamente provada sem cair-se numa falácia informal, fica bem evidente que a matemática é, por assim dizer, antes de mais nada, uma questão de .

Embora isso esteja evidente, há aqueles que argumentarão que os conceitos primitivos matemáticos estão evidentes na natureza para qualquer um (4), matemático ou não. Uma campina sem muito relevo seria uma forma de expressar um plano e um pingo seria um ponto. Contudo, a empiria não é e nem nunca foi o reduto primo da existência. Dado que a existência não é uma medida de gradação – ou seja, existe ou não existe, não há a possibilidade de “existir mais” ou “existir menos” – a existência não pode ser determinada por conceitos de mensuração (como a evidência). Algo existindo, ele existe, tenha mais ou menos evidência. Sendo a matemática fundamentada por conceitos apriorísticos, sua existência independe de quão evidentes são seus conceitos e sua aceitação depende da mais pura convicção – , se me permitem.

Conquanto a matemática seja amplamente aceita, o conceito de Deus não desfruta de semelhante situação. Isso é curioso, pois, assim como a matemática, Deus precede a ciência (1), é composto por conceitos primos axiomáticos (2) – no caso do Deus judaico-cristão, a onisciência, a onipresença e a onipotência – e está sujeito a ser vivenciado em experiências individuais (caso de ateus convertidos) e, segundo Davi, na natureza (Salmo 19:1); ou seja, para teólogos e não teólogos (4). Não se deve esquecer, também, a consistente lógica interna do conceito de Deus (3). Contudo, o conceito de Deus tem ainda um trunfo: a cabal prova metafísica enunciada por Sócrates, Aristóteles e, posterior e – em minha humilde opinião – mais brilhantemente, São Tomás de Aquino (as famosas Cinco Vias Tomistas). Abramos esse parêntese.

*Sócrates parte do princípio das causas não causadas (posteriormente transformada na Segunda Via Tomista: a Prova da Causalidade Eficiente). Sendo o mundo ordenado por relações contínuas de causa e efeito, toda causa é efeito de algo. Assim, nesse mundo sensível, as causas conectam-se umas às outras, formando uma cadeia de ordenação. Dito isso duas coisas devem ser consideradas: (1) a supressão de uma causa suprime seu efeito e, conseqüentemente, os efeitos decorrentes do efeito; (2) a seqüência de causalidade não é indefinida, pois não havendo causa prima, não haveria seus conseqüentes efeitos e nada existiria. Como as coisas existem, é seguro afirmar que a seqüência é definida. Dessa forma, há uma causa das causas não causadas, que é Deus. Não é acaso que Sócrates morreu clamando “Causa das causas, tende piedade de mim.
Vale ressaltar que “o famoso físico inglês Stephen Hawkins em sua obra "Breve História do Tempo" reconheceu que a teoria do Big-Bang (grande explosão que deu origem ao universo, ordenando-o e não causando desordem, como toda explosão faz devido a Lei da entropia) exige um ser criador. Hawkins admitiu ainda que o universo é feito como uma mensagem enviada para o homem. Ora, isto supõe um remetente da mensagem. Ele, porém, confessa que a ciência não pode admitir um criador e parte então para uma teoria gnóstica para explicar o mundo.”¹

*Aristóteles, por sua vez, parte do grau de perfeição dos entes (posteriormente, a Quarta Via Tomista: Dos Graus de Perfeição dos Entes). Ora, os entes possuem qualidades em graus diferentes. A comparação só pode ser feita segunda sua proximidade com o grau máximo de perfeição em dado quesito. Assim, há de existir a verdade absoluta, a beleza absoluta, a nobreza absoluta etc. Todos esses absolutos, segundo Aristóteles, convergem num único ser, pois, segundo o próprio, “a verdade máxima é a máxima entidade, o bem máximo é a máxima entidade”. Aquilo que é máximo em qualquer gênero é a causa de tudo que existe nesse gênero, pois, novamente Aristóteles, “o calor máximo é a fonte de todo calor”. Logo, aquilo que é a causa da bondade absoluta, do bem absoluto, da virtude absoluta etc, ou seja, algo que é para todas as coisas a causa de seu ser. A isto chamamos Deus.

A obra de Tomás de Aquino sobre suas cinco vias é vasta e interessante de se ler. Trata-se da Suma Teológica I, q.2, a.a 1 a 4. Fechemos o parêntese.

Ora, dado que o conceito de Deus é apriorístico como a matemática, fundamenta-se em conceitos primitivos e axiomáticos como a matemática, dispõe de uma consistente lógica interna como a matemática, é evidente para não peritos como a matemática e, ainda por cima, possui uma forte prova metafísica, não vejo como pessoas podem acatar a matemática sem cair num mínimo teísmo. Nada se pode dizer de ateus que não aceitam a matemática, pois, de fato, nem Deus nem a matemática podem ser cientificamente provados. “Não somente, há uma série de outras áreas impossíveis de serem provadas por meio da ciência que nem por isso são inválidas. Deveriam também rejeitar a lógica (que é pressuposta, assim como a matemática), julgamentos éticos de valor (como provar cientificamente que roubar é errado?), julgamentos estéticos (como provar cientificamente o belo?) e, por fim, a própria ciência (!), que é permeada de suposições (sem assumir que a velocidade da luz é constante, a teoria da relatividade não faz sentido nenhum).”²

Não faz o menor sentido aceitar a matemática, a lógica, julgamentos de estética, juízos de valor e a própria ciência e rejeitar a Deus embasado na idéia de incapacidade de comprovação científica. Há aqueles que de alguma forma conseguem viver com essa absurda incoerência. Pior ainda, arranjam algum tipo de código coerente para conseguirem conviver com essa incoerência. De qualquer forma, habilidosos na incoerência, incapazes na abstração.

¹ Fedeli, Orlando - "Existência de Deus",MONTFORT Associação Cultural
²Baseado nesse vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=nhx-IvpeUJ0

4 comentários:

Thomás disse...

Gostei muito do texto, achei muito bem estruturado, contudo, ele peca pelo seu oposto:

Você argumenta que a lógica deve ser assumida como válida a priori, o que a coloca no mesmo nível de deus. Logo, se a primeira é aceita, o segundo também deve ser.

O único problema surge quando pensamos na infinidade de objetos que podem alegar validade apriorística. São tantos quanto a mente humana desejar criar, e aí não temos como separar com uma medida firme o que difere opinião de verdade (no sentido Popperiano). Entramos aí num "vale tudo" sem fim.

Em resumo, essa é um longa discussão. Parabén pelo texto.

Conde Loppeux de la Villanueva disse...

Você argumenta que a lógica deve ser assumida como válida a priori, o que a coloca no mesmo nível de deus. Logo, se a primeira é aceita, o segundo também deve ser.


Conde-Aqui me parece uma inversão lógica: Deus é algo apriorístico, precisamente pq se ele é o Criador de tudo, logo, nada pode ser concebido sem Ele. Por outro lado, vamos analisar algo tb a posteriori. Se o acaso cria alguma coisa,logo, o acaso e a irrazão são superiores à razão e não podemos nem mesmo afirmar a idéia de um ordenamento racional no universo. Logo, se o acaso não pode ser provado como criador de algo nem mesmo em nós mesmos, como pode ser provado como gerador do universo?

Vinícius Coelho disse...

o problema é q as pessoas tornaram-se imediatistas D+...

gostei do blog. vou seguir.

http://administrite.blogspot.com

Lucas Ramalho disse...

concordo quando tu diz que não se pode dizer que "não acredita, pois não tem fundamento científico", já que nem a ciência o tem.
o problema é que cada um escolhe no "fundamento" que acredita... livre-arbítrio de Deus (ou da democracia).
;)

abraço, chapa!
e parabens pelo blog!